domingo, novembro 16, 2008

Técnicas alimentares: saúde ou doença?



Folha de São Paulo, terça-feira, 04 de novembro de 2008 -- TENDÊNCIAS/DEBATES

Técnicas alimentares: saúde ou doença?

GILBERTO DUPAS

Podemos sonhar com uma agricultura orgânica que gere mais saúde que
doenças, produzindo comida de boa qualidade?

A ALIMENTAÇÃO humana, contaminada de agrotóxicos e pesticidas e
alterada em sua natureza intrínseca pelo processamento radical, está
sendo acusada por especialistas de ter sido transformada em uma
máquina de fabricar doentes e gerar verdadeiras epidemias
contemporâneas, como cânceres e diabetes.

Para complicar mais, para produzir comida exige-se agora que a
agricultura dispute as terras disponíveis com os biocombustíveis
necessários para mover outra praga global: a frota explosiva de
automóveis.

Durante o século 19, as principais preocupações associadas a questões
agrícolas e ambientais na Europa e na América do Norte eram o
esgotamento da fertilidade das terras, a crescente poluição das
cidades e o desflorestamento de continentes inteiros.

Com a exaustão dos fertilizantes naturais, agricultores europeus da
época chegaram a invadir as regiões das batalhas de Waterloo e
Austerlitz para buscar os ossos das catacumbas e espalhá-los moídos
sobre seus campos. O primeiro barco carregado de guano peruano
-esterco de aves marinhas- chegou a Liverpool em 1835; em 1847, já se
importavam 222 mil toneladas anuais.

Por volta dos anos 1860, Marx havia se convencido da natureza
insustentável da agricultura capitalista.

Suas contradições foram muito sentidas nos EUA com o bloqueio do guano
peruano pelo monopólio britânico. O Decreto das Guano Islands,
aprovado pelo Congresso em 1856, fez os norte-americanos se apossarem
de quase 70 ilhas e arrecifes em todo o mundo. Com o esgotamento das
reservas peruanas, foi necessário substituir o guano por nitratos
chilenos. Essa sucessão de crises impulsionou os grandes avanços na
ciência do solo, estimulando a revolução agrícola com a indústria de
fertilizantes.

Continuavam, porém, preocupações crescentes com a "exaustão do solo" e
o processo de destruição ecológica. Começaram, então, a ser utilizados
nitrogênio, fósforo, potássio e os "superfosfatos" sintéticos.

Percebendo essa crise estrutural na fertilidade das terras, Marx
acusou a agricultura capitalista de larga escala e a indústria de se
unirem para empobrecer o solo e o trabalhador; a grande propriedade
fundiária iria reduzindo a população agrícola a um mínimo e surgiria
uma crescente população industrial amontoada nas cidades.

Para ele, era uma falha irreparável no processo interdependente do
metabolismo social, prescrito pelas leis naturais; o sistema
industrial e o amplo comércio aplicados à agricultura debilitariam os
trabalhadores e ofereceriam aos produtores meios para exaurir o solo.
As condições de sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido
violadas. Curioso que tal idéia se aproxime da noção atual de
desenvolvimento sustentável.

A solução de Marx para essa grave questão era o tratamento racional da
terra como propriedade comunal permanente, o que, porém, se mostrou um
fracasso quando aplicado nas experiências de socialismo real. Foi a
agricultura capitalista de larga escala -apoiada numa poderosa
indústria global de agrotóxicos, fertilizantes, pesticidas e produtos
químicos avançados- que acabou se impondo globalmente durante a
segunda metade do século passado.

De fato, com essas tecnologias e manejos, o grande agronegócio global
deu conta da oferta de alimentos básicos para crescentes populações
mundiais; mas a qualidade dos produtos alimentares resultantes se
degradou. Contaminados por pesticidas, antibióticos, hormônios e
resíduos tóxicos, alimentos padronizados e suas cadeias protéicas
deixam atrás de si um meio ambiente devastado.

Os transgênicos, última promessa da técnica, são ditos capazes de
revolucionar o mundo dos alimentos. Mas seus riscos são omitidos,
culturas tradicionais e variedades genéticas são destruídas, a
padronização aumenta, a qualidade final é posta em dúvida, os efeitos
sobre a saúde causam preocupações e a dependência tecnológica se
concentra.

Será que podemos voltar a sonhar com uma agricultura orgânica que gere
mais saúde que doenças, produzindo comida natural de boa qualidade,
verduras e legumes sem agrotóxicos e não envenene terras cultiváveis e
rios? Ou estaremos inevitavelmente condenados à esquizofrenia de uma
civilização que alerta cada vez mais sobre o risco dos alimentos
contaminados, mas obriga quem quiser ser saudável a procurar produtos
orgânicos por mais que o dobro do preço?

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GILBERTO DUPAS , economista, é coordenador geral do Grupo de
Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos
Econômicos e Internacionais e autor de "O Mito do Progresso" e "O
Incidente", entre outras obras.

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