sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Software livre e Agroecologia

Software livre e Agroecologia
10 de setembro de 2007
Ines Claudete Burg



O software livre, social e culturalmente, é visto e anunciado, pelos tecnicistas e defensores do livre mercado, como ‘tênis’ fora de moda, tecnologia não tida como de ponta e tantas outras coisas que não estão entre os interesses e comportamentos mais aceitos pela atual sociedade de consumo. Assim acontece com a agroecologia, com a semente crioula, com a pequena agroindústria cooperativa, com os remédios homeopáticos e fitoterapicos.
Sob o ponto de vista educacional, o fortalecimento do software livre enfrenta os mesmos desafios que qualquer outra possibilidade de mudança política, econômica, cultural e social. Somos produto de um modelo tradicional de educação autoritária, centrada na figura do pai, do professor, do padre, do doutor, dos meios de comunicação: dos que sabem e que se julgam os responsáveis de repassar seus conhecimentos para os que não sabem. Recebemos aquilo que outros determinam ser importante para nossas vidas e assim somos preparados para reproduzir sem refletir sobre nossos atos repetitivos. Não somos desafiados a entender causa e efeito, como as coisas são feitas e funcionam, os porquês de cada ação que fazemos. Somos apenas treinados a repetir ações e comandos sem nos darmos conta como e porque as nossas ações resultam nisto ou naquilo.
Na informática, o alcance dessa maneira de ver e conceber a vida é muito maior que em outros campos do conhecimento. Na informática, lidamos com maior grau de abstração da realidade. Se não aprendermos, minimamente, a sua lógica de funcionamento, o que está por trás da máquina, de cada componente, de cada comando, facilmente nos perdemos e não sabemos como lidar com ela. A forma tradicional de lidar com o conhecimento cria dependência, principal característica da sociedade de consumo capitalista. As pessoas treinadas a apenas repetir perdem a capacidade criativa e de viver com autonomia, preferem a segurança da dependência e da submissão à liberdade de poder sempre recriar a realidade.
Na informática, como em qualquer campo do conhecimento e da vida, a superação da dependência dos modelos únicos está relacionada à capacidade de reagir permanentemente diante das novas situações, de uma nova realidade.
Se a estrutura de pensamento, construída nos indivíduos, está preparada para reagir positivamente diante de novas situações e realidades, será sempre possível encontrar novas soluções para as novas situações.
A possibilidade de melhor administrar as dificuldades do dia a dia está relacionada a capacidade de ver a realidade em permanente movimento, que nada está pronto, nada está acabado, sempre é possível encontrar outra resposta para um mesmo problema. O software livre assim como a agroecologia, a saúde natural, uma alimentação saudável dependem dessa nova postura, desse novo modo de encarar a vida. Os vacinados e contaminados pelo neo-liberalismo - e todos nós temos um pouco disso - migram para o software livre quando descobrem suas vantagens econômicas mas não são capazes de ver nele seu potencial fortalecedor e construtor de uma nova forma de ver e conceber a vida e o desenvolvimento. O software livre tem maior aceitação, mesmo diante das dificuldades de adaptação, junto às organizações e pessoas que já estão envolvidas em processos de luta, transformação e superação do atual modelo de desenvolvimento
capitalista. O espírito de liberdade que mobiliza os amantes do Software Livre ultrapassa os limites da informática e se estende para outras áreas do conhecimento, fortalecendo a luta pela superação do conceito de propriedade intelectual e possibilitando o conhecimento compartilhado e colocado em comum na perspectiva de melhorar a vida e não apenas voltado aos interesses econômicos de corporações sedentas por lucros.
Iniciativas como cerveja, filme, jornalismo, biotecnologias, fármacos, pesquisas, inovações de código aberto começam a pipocar em todo o mundo, integrando e fortalecendo o movimento pela liberdade do conhecimento.
Isso, na verdade, representa uma poderosa força na construção de uma nova cultura que valoriza a cooperação como forma de construção do conhecimento e de busca de soluções para os problemas da atualidade.
A importância do uso do “Software” Livre está relacionada à autonomia possível e desejável, até por uma questão de segurança e soberania. O que representa, para o Brasil, o monopólio da “Microsoft”, onde mais de 90% dos usuários de informática são totalmente dependentes e reféns dela? Isso é tão ou mais preocupante que o monopólio das sementes, das biotecnologias, dos alimentos ou de qualquer outro setor.
Fórum Brasileiro de Economia Solidária
http://www.fbes.org.br _PDF_POWERED _PDF_GENERATED 27 February, 2009, 14:52
Lutar pela democratização e liberdade do código fonte na informática tem o mesmo significado político que a luta pela democratização e liberdade das sementes na agricultura, ou das descobertas na medicina, na biotecnologia, ou em qualquer outra área do conhecimento.

O caso da ASSESOAR - Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural A Assesoar é uma Associação de Agricultores e Agricultoras e tem sua ação organizada em quatro eixos estratégicos, denominados: “Práticas sistemáticas de estudo, reflexão, sistematização, relações e suporte estrutural”; “Práticas sociais em desenvolvimento local/municipal”; “Práticas sociais de articulação e ampliação das referências geradas localmente”; “Práticas sociais de geração de referências em educação pública do campo”.
Como em uma árvore, onde a luz, a água, o ar e o solo interagem, por um movimento dinâmico e em todas as direções, produzindo os nutrientes necessários para o desenvolvimento saudável da planta, na ASSESOAR, as ações dos quatro eixos interagem de forma a ‘gerar referências em desenvolvimento, fundamentado nos princípios da Ecologia, fortalecendo processos formativos, a partir da organização e luta em defesa de condições objetivas e subjetivas para reprodução da vida com dignidade e justiça social, tendo em vista a ampliação dessas referências na perspectiva das políticas públicas2.
Na Assesoar, a decisão política de migrar para o Software Livre, devido sua importância estratégica, vem desde 1997.
Inicialmente, a partir de testes em algumas máquinas, enfrentando dificuldades que hoje não existem mais. Em 2000, com a decisão de migrar totalmente para o Software Livre, instalamos uma rede interna com terminais interligados a um servidor.
Reaproveitamos todas as máquinas encostadas (desde 486/100 com 16 de ram). Nenhuma máquina é igual, nem na marca dos componentes, nem nas configurações; Várias distribuições linux rodam sem conflito: Red Hat (servidor), Techlinux, Conectiva, Mandrake, Kurumin, Suse, Kalango, Mandriva, Libertas, Ubuntu...
O ‘uso’ reduziu a resistência dos usuários e não houve necessidade de ‘cursos’, apenas apoio nas atividades iniciais.
Utilizamos: editores de textos, editores de imagens, desenho, planilha, apresentações, banco de dados, editor html, recursos de internet (navegação, ftp, baixar arquivos, correio eletrônico...), trabalhamos normalmente com 99% de arquivos de outros formatos e plataformas e adeus vírus.
Algumas dificuldades por conta do monopólio fechado dos softwares proprietários: aproveitamento de arquivos do Corel Draw; acesso a algumas páginas web, principalmente de órgãos públicos, produzidos com recursos exclusivos da Microsoft.
Quer ler mais?

http://www.comciencia.br/reportagens/2004/08/05.shtml
Isso é só uma das muitas citações deste texto:
http://sistema.assesoar.org.br/arquivos/TAP000161.htm

Fórum Brasileiro de Economia Solidária
http://www.fbes.org.br _PDF_POWERED _PDF_GENERATED 27 February, 2009, 14:52
Sobre a autora:

veja o livro dela " Alternativas ecológicas para a Prevenção e controle de pragas e doneças"

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Selos e as leis dos Produtos Orgânicos

e-mail de Qui, 19 de Fev de 2009


"Prezados,
INFORMAMOS que se encontra em CONSULTA PÚBLICA O SELO ORGÂNICO.Você pode participar da decisão sobre o selo que representará o SISTEMA BRASILEIRO DE AVALIAÇÃO DA CONFORMIDADE ORGÂNICA entre no site http://www.agricultura.gov.br/ (Consulta Pública Selo dos Orgânicos) e faça a sua escolha.Você tem até o dia 19 de março para votar e para incentivar outraspessoas a participarem dessa escolha.Esse selo passará a estar presente em todos os produtos orgânicos em que a avaliação da conformidade tenha sido realizada por organismos credenciados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, apartir de 2010. Atenciosamente,Tereza Cristina de Oliveira SaminêzServiço de Estudos e Normas TécnicasCoordenação de AgroecologiaMinistério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento "





Selos são simbolos que nos identificam algo. Nesse caso, alimentos orgânicos. Já existem vários por aí. Tomara que este, que está em vias de se concretizar, num âmbito federal traga novas oportunidades paras os Agricultores Familiares! Porque para os consumidores, a quem estes selos se destinam, acredito que ainda faltam muitos esclarecimentos a respeito da real importância e significado dos tais selos de certificações.




Segundo Luis Fernando Guedes Pinto, coordenador do IMAFLORA, uma das certificadoras do selo FSC diz: " É preciso saber que cada selo traz uma mensagem. O consumidor tem de ser capaz de compreender aquela mensagem, e distinguir se aquilo é o que procura".





Continuando a falar de Agroecologia e Ministério da Agricultura, publico abaixo as ultimas infos sobre a Legislação dos Orgânicos - do grupo de e-mails da Comissão da produção Orgânica - através de e-mail (de sábado, 20 de dezembro de 2008 ) do Marcelo Laurino do MAPA - Ministério da Agricultura: (click no link)



"Caros Amigos:

É com grata satisfação que comunicamos a publicação da Instrução Normativa MAPA n.º 64, que trata do regulamento para a Produção Animal e Vegetal Orgânicas, no Diário Oficial da União edição de 19/12/2008, páginas 21 a 26.


Com a publicação da IN 64, fica revogada a histórica IN 07/1999 que estabeleceu um marco memorável no desenvolvimento da Produção Orgânica no Brasil. Esta Comissão vem prestar uma singela porém sicera homenagem a todos os colegas que estiveram envolvidos em sua concepção, construção e publicação pelo MAPA, por sua coragem e seu elevado espírito público pela iniciativa.
Um grande abraço.
Marcelo Laurino
CPOrg/SP"


Fonte: Revista Página 22: Certificação: Saiba como decifrar os selos verdes. FGV - número 17, março 2008.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Horta: suas cores, cheiros e sabores

A horta é algo mágico que mesmo não tendo crescido com uma perto de mim, assim que entrei na faculdade sabia que era pra perto dela que queria ir.. E assim fui me aproximando. Conhecendo lentamente as hortas de Botucatu, junto com o lindo programa de Hortas comunitárias apoiado pela prefeitura municipal (que fornecia as mudas e o esterco, além da área, sem uso de adubos químicos ou agrotóxicos!), só fui tendo certeza de que essa prática agrícola muito acrescenta no ser humano, no que diz respeito a tal Segurança e Soberania alimentar. E fui percebendo a beleza que existe por traz desse trabalho tão belo de horticultor. A produção do nosso próprio alimento!
Compartilho fotos das hortas de Botucatu (2007) e a beleza do artigo do mestre Rubem Alves sobre elas.


Horta do bairro 24 de maio


Horta do Jardim Convívio


Horta da Cohab I








Horta da "Prof. Lídia" - centro











Rubem Alves é Mineiro, nascido em Boa Esperança (1933). Professor da Unicamp e psicanalista. Hoje, sua luta e sua alegria associam-se definitivamente à palavra. Autor de vários artigos e obras publicadas.




HORTA
julho/2006
Rubem Alves


Uma horta é uma festa para os cinco sentidos. Boa de cheirar, ver, ouvir, tocar e comer. É coisa mágica, erótica, o cio da terra provocando o cio dos homens.
Cheguei de viagem e antes de entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou. Pode parecer estranho, mas é pelo coração que me ligo à minha horta. Daí a alegria... Estranho porque para muitos a relação acontece através da boca e do estômago. Horta como o lugar onde crescem as coisas que, no momento próprio, viram saladas, refogados, sopas e suflês. Também isso. Mas não só. Gosto dela, mesmo que não tenha nada para colher. Ou melhor: há sempre o que colher, só que não pra comer.


Semente, sêmen

Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina - seja criança, seja planta - é uma sensaçao de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de despertar o cio da terra.

Não é à toa que povos de tradições milenares ligavam a fertilidade da terra à fertilidade dos homens e das mulheres. Faziam suas celebrações religiosas em meio aos campos recém-semeados, para que o cio humano provocasse a inveja da terra, e ela também se excitasse para o recebimento das sementes. O cio dos homens provocando o cio da terra. Mas o inverso também é verdadeiro: o cio da terra pode provocar o cio dos homens...

Cio é desejo intenso, não dá descanso, invade tudo e provoca sonhos, semente que não se esquece do seu destino, vida querendo fertilizar e ser fertilizada, para crescer. Pois a horta é assim também. Não é coisa só para boca. Se apossa do corpo inteiro, entra pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, toma conta da imaginação, invoca memórias...


Cheiração beatífica

Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz. Os teólogos de outros tempos falavam da “visão beatífica de Deus”. Mas nunca li, em nenhum deles, coisa alguma sobre “a cheiração beatífica de Deus”. Como se fosse indigno que Deus tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso corpo.


Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro. Essa coisa indefinível, invisível, que entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós, emanação mágica por meio da qual nós o possuímos. Quem cheira fundo - e para isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está dizendo o quanto ama...


E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só reconhece o comer como forma de apropriação do objeto. Os cheiros moram na horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de reconhecê-los. Há pessoas que se reúnem para ouvir música; outras pelo puro prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa horta, e ali nos deliciar com a sua perplexidade na medida em que lhes oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: “Sabe o que é isto? Veja como é gostoso...“


Olhares para a vida

Horta é coisa boa de se ver.
Dizem os poemas sagrados que Deus Todo-Poderoso, depois de criar todas as coisas, parou, deixou cair os braços e foi invadido pelo puro deleite de ver a beleza de tudo o que existia. Ver é experiência estética, não serve para coisa alguma. Diferente do comer. Comer é útil. A mãe insiste com a criança: “Coma o espinafre, meu bem, ele faz você ficar forte.” O “ficar forte” justifica suportar o gosto ruim: é a utilidade da coisa.

Mas nada disso se pode dizer do ato de ver. Ver os espinafres, as couves, as alfaces, os tomates não é útil para coisa alguma, não serve para nada. Mas faz bem à alma. “Não só de pão viverá o homem”, diz o texto sagrado. Vivemos também das coisas belas.

Há o belo das cores: o vermelho dos pimentões, das pimentinhas ardidas, dos tomatinhos... Ah! Os tomatinhos... Falo daqueles pequenos, minúsculos, que não se encontram em lugar civilizado, não se vendem em feiras (quanto poderiam valer?). Mas eu os descobri numa velha fazenda, e não resisti à tentação de trazer uma mudas. Sua maior utilidade, além de serem redondinhos e vermelhos, é serem planta da minha infância. De modo que, na minha horta, eu tenho um arbusto mágico, que me leva através do tempo, e, quando eu os apanho e os como, sinto renascer dentro do meu corpo o corpo de um menino que mora nele.

Há o verde também dos pimentões, que se comprazem em brincar com as cores das cebolinhas, das alfaces, das couves, dos espinafres, da salsa. O amarelo das cenouras, e de novo dos pimentões (vocês já viram pimentões amarelos? São raros, brilhantes, maravilhosos. Eu até tive uma árvore de Natal enfeitada só com pimentões verdes, verrnelhos e amarelos). O roxo das beterrabas, dos rabanetes, das berinjelas. O branco dos nabos.

E ao ver essa abundância de cores imagino que a natureza é brincalhona, ela se compraz na exuberância e no excesso. E enquanto meus olhos vão andando pela variedade das cores, coisas vão acontecendo dentro de mim. Porque isso significa que elas existem dentro de mim. Se eu fosse cego para as cores, não me aperceberia de nenhuma diferença. O objeto que vejo revela um objeto que existe dentro de mim. Os olhos só vêem fora aquilo que já existe dentro como desejo. Tenho também um pé de ora-pro-nóbis, coisa de gente pobre, em Minas Gerais. Só vi referências a ele em dois lugares. Primeiro, no livro Fogão de lenha, de Maria Stella Libânio Christo, como uma receita culinária no meio de uma celebração de 300 anos de cozinha mineira, que vale pelo puro deleite de ler. E depois num poema de Adélia Prado - ela sabe muito bem do encanto das hortas. Ora-pro-nóbis, nome que parece responso litúrgico, é um arbusto que se planta uma vez na vida. Ele é tão amigo que fica lá, soltando folhas sem parar.

Pois é: uma festa. Cores e formas, tudo diferente, natureza brincalhona, artista, imaginação sem fim. Morangas gomosas; aboborões e abobrinhas; quiabos escorregadios; berinjelas roxo-pretas, engraçadas em tudo, até no nome; mandiocas carás de debaixo da terra; carás do ar, pendentes; inhames; chuchus; nabos redondos; nabos fálicos; alcachofras; folhas de todos os desenhos; alfaces; almeirão; acelgas; brócolis; couve; bertalha; repolhos brancos; repolhos roxos; agrião; espinafre. Diante desse esbanjamento de inventividade o jeito é o espanto, o riso e a gratidão de que este seja um mundo onde o enfado é impossível.


Sons e toques

Horta também é coisa boa de se ouvir. Ora, direis, ouvir a horta... Plantas não dizem nada, não cantam! Se fosse passarinho, ou o mar, ou as casuarinas, se compreenderia. Mas a horta? Horta é coisa calma e silenciosa. E isso é bom. Ouvir o silêncio.

As pessoas exigem sempre uma palavra. Têm medo de ficar quietas. Entram em pânico quando o assunto acaba, começam a falar bobagens só por falar, porque é melhor dizer besteira que ficar ali na presença do outro, sem nada dizer e sem nada ouvir.

Com as plantas é diferente. Elas nos tranqüilizam. Se quisermos falar com elas, tudo bem. Acho que gostam. Mas o melhor de tudo é que, ao falar com elas, não é preciso fingir, porque as plantas são extremamente discretas. Guardam os segredos com uma fidelidade vegetal...

E as hortas são também coisas boas de se tocar. Sentir o capim molhado, enfiar a mão na terra... Se você tiver a felicidade rara de ter uma agüinha que escorre e cai, você terá uma das experiências mais calmas que se pode ter. Ouvir o barulhinho da água. Ele trará memórias ou fantasias de regatos escondidos no meio do mato, correndo entre pedras, fazendo crescer o limo verde. E aí você enfiará seus pés dentro dela. Difícil um prazer igual pela tranqüilidade, pela pureza, pela profundidade. Porque a água nos reconduz às nossas origens.

E a terra. Não, não é sujeira. Terra preta com esterco: ali a vida está acontecendo, invisivelmente. Meu destino. Um dia serei terra, de mim a vida poderá nascer de novo. As crianças, sem que ninguém as ensine, sabem dessas coisas. Somos nós que dizemos que terra é sujeira, porque preferimos os carpetes assépticos e mortos e os pisos vitrificados onde mão nenhuma pode penetrar. Brincar com a terra, conquistar sua dureza, misturar o esterco esfarelado, senti-la leve e solta, esguichar a água. Ali, diante dos nossos olhos, uma metamorfose vai acontecendo, e a terra, de coisa estéril, dura, virgem, é agora mulher em cio, pedindo as sementes. Vamos abrindo os sulcos, canteiros, e neles colocamos a vida que o nosso desejo escolheu. Coisa gostosa. Estamos muito próximos de nossas origens. Nossos pensamentos ficam diferentes. Deixam de perambular pelos desertos de ansiedade e ficam cada vez mais próximos, colados à mão, colados à terra. Os pensamentos fantasmas voltam ao aqui e ao agora do corpo, passam a ser coisas amigas e alegres.

Segundo filósofos de outros tempos, tudo o que existe se reduz a quatro elementos: a terra, a água, o vento e o fogo. E ali estamos nós, mãos na terra, terra molhada, e a brisa sopra. Horta, pedaço de nós mesmos, mãe. Se compreendermos que ela é não só a nossa origem como também nosso destino, e se a amarmos, então estaremos amando a nós mesmos, como seremos. Não, não tenho uma horta para economizar na feira. Tenho uma horta porque preciso dela, como preciso de alguém a quem amo.


Sabores amigos

Há, por fim, o ato supremo de comer.
Comer: dizer que o que estava fora pode entrar, será bem recebido, eu o desejo, tenho fome. Para isso examino o que ainda não conheço, pois todo cuidado é pouco. Nem tudo é bom de se comer: há coisas de nojo e de vômito, venenosas e de morte. Provo a coisa: primeiro a aparência, a cor, o cheiro e, cuidadosamente, na ponta da língua, o gosto, para o veredito final - amigo ou inimigo... É assim que a criança aprende sua primeira lição sobre o mundo, mundo reduzido a coisas boas que devem ser engolidas e coisas más que devem ser vomitadas. Assim nasceu a ética, na boca, pois é ela a primeira a dizer “é bom”, “é mau”. E a sua sabedoria é imensa, pois o corpo é o grande juiz.

A horta é lugar de coisas boas para comer, ali onde se planta a amizade pelo corpo, onde se plantam os objetos do nosso desejo, que nos fazem alegres quando estão de fora e mais alegres ainda quando os colocamos na boca e dizemos: “Que gostoso...\" Sem saber, estamos afirmando nossa solidariedade com a terra. A horta é parte do meu corpo, do lado de fora, e é por isso que pode ser comida, entrar para dentro, transformar-se em vida, minha vida. Eu dou vida à horta, preparo a terra, planto as sementes, rego, elas vivem, e depois se oferecem a mim, através do meu desejo.

E como elas são brincalhonas. Jiló amargo, careta pra quem não está acostumado; o picante da pimenta; o duro amarelo adocicado da cenoura recém-arrancada da terra; o estranho gosto dos nabos obscenos; as ervilhas, brincalhonas e redondas; e a peça que os alhos e as cebolas nos pregam, fica o cheiro, evidência do crime...

E nós tomamos os frutos da horta e os transformamos pelo poder alquímico do fogo. Já disse dos quatro elementos dos sábios de outro tempo, terra, água, ar e fogo. Sem o fogo só podemos juntar as coisas, do jeito como a terra nos deu. Mas o fogo nos dá um outro poder, tudo fica diferente. Misturamos, alteramos, inventamos. No peixe branco e pálido, o vermelho do urucum, extraído da frutinha pelo poder do calor. vermelho pra excitar: na cor mora o quente. Junta-se mais: a cebola, os pimentões verdes e vermelhos, o tomate, o coentro. E a pimenta, magia estranha, ainda não entendi por que gosto dela. Talvez por ser metáfora de certos amores que de tão ardentes viram ardume, e machucam. E aí tudo junto, pelo poder do fogo, a moqueca, a horta transformada em culinária, em gosto inventado.

Comer é ato complicado, há nele uma mistura de amor e de destruição. As mandíbulas mastigando, infatigáveis, o movimento brusco da cabeça para frente e para baixo, boca aberta, para abocanhar o naco que o garfo espetou, as bochechas estufadas de comida. O ato de comer é como os sonhos - pode ser psicanalisado, porque revela nossos segredos de ódio e de amor, nosso nojo ou nossa voracidade, nossa mansidão ou nossa violência.

Ao comer nós nos revelamos. E nisto está a diferença entre a comida crescida na horta e a comprada na feira: na primeira está um pouco de nós mesmos - e ao sentir seu gosto bom é como se eu estivesse sentindo meu próprio gosto. “Eu plantei, eu colhi...\" O que está em jogo não é o tomate, a alface - é o eu que está sendo servido, disfarçado de hortaliça. A refeição fica meio sacramental. Come-se um pedaço da própria pessoa, que se oferece, de forma vegetal, num banquete canibal. “Tomai, comei, isto é o meu corpo. Tomai, bebei, isto é o meu sangue...”


Alegria do encontro

Pois é, horta é algo mágico, erótico, onde a vida cresce e também nós, no que plantamos. Daí a alegria. E isso é saúde, porque dá vontade de viver. Saúde não mora no corpo, mas existe entre o corpo e o mundo - é o desejo, o apetite, a nostalgia, o sentimento de uma fome imensa que nos leva a desejar o mundo inteiro. Alguém já disse que somos infelizes só porque não podemos comer tudo aquilo que vemos. Concordo em parte, pois há aqueles que vêem tudo, mas não desejam nada. Estão doentes, prisioneiros deles mesmos. Saúde: quando o desejo pulsa forte, cio por coisas amadas, e o corpo vai, em busca do objeto desejado - a horta podendo ser um pequeno (e delicioso) fragmento dos nossos maiores e infinitos desejos. O mundo bem poderia ser uma grande horta: canteiros sem fim, terra fértil, nossas sementes se espalhando, nosso corpo ressuscitando de sua grande e mortal letargia.

E penso esta coisa insólita: há lições de kama-sutra a serem aprendidas na horta, no despertar dos sentidos que ela provoca. O caminho da saúde, o caminho da libertação do corpo para copular com os objetos do desejo (e uso a palavra copular no seu preciso sentido gramatical de “fazer conexão” e também no sentido erótico de união entre duas pessoas que se querem e, por isso, se interpenetram, transgredindo os limites do próprio corpo) passa pelo caminho do despertamento erótico dos nossos sentidos adormecidos. A capacidade sutil de distinguir os perfumes, o olhar extasiado que diz, para a planta ou para a pessoa, não importa: \"Como é bom que você existe!”; o ouvido que tem a tranqüilidade para morar no silêncio, sem se perturbar; a pele que se deleita com o vento, com a água, com a terra; e a boca que sente o gosto da coisa como quem prova um vinho.

Uma horta é um bom lugar para começar. E pra continuar, até acabar. Seria bom saber que alguém colherá coisas que nós semeamos, depois da nossa partida, e as plantas continuarão, como um gesto nosso de amor.

(O quarto do mistério, Papirus, 1995




















segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Desenvolvimento das Regiões Metropolitanas

Falando das Regiões metropolitanas, a pesquisa Cenários 2020 ressalta algo que salta aos olhos aqui em minha região.
"O Estado de São Paulo é composto de 645 municípios dos quais 399 são de pequeno porte, 175 de médio porte e 71 de grande porte. Aos pequenos municípios, cabem 4,54% do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado e neles vivem 7,46% da população; aos de porte médio, 14,58% do PIB e 18,91% da população; e aos grandes, 80,88% do PIB e 73,63% da população. Nota-se que os municípios de pequeno e médio porte respondem por pouco menos de 20% do PIB estadual.
Segundo pesquisas da Fundação Seade, a tendência da evolução da dinâmica ocupacional do Estado é de concentração ainda maior nas regiões metropolitanas, as quais constituem a Macrometrópole formada pelo quadrilátero Sorocaba, Campinas, Santos e São José dos Campos.
Este movimento, porém, pode ser freado pelas recentes crises que a concentração gerou como piora na qualidade de vida, trânsito congestionado, maior tempo de transporte, incremento do custo de vida, entre outros problemas socioambientais. Esses fatores podem levar a um movimento migratório para as pequenas cidades, impulsionado pela busca de melhor qualidade de vida.
Para potencializar a descentralização, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento promove hoje a atração de investimentos pautada na regionalização da economia, direcionando-os para o oeste paulista."


Valinhos
(cidade vizinha a Campinas) cresceu absurdamente nos últimos anos, principalmente em número de condomínios residencias... Valinhos é o oitavo município mais populoso da Região Metropolitana de Campinas, tendo idêntica posição da Densidade Demográfica (Habitantes/km2). Segundo dados do IBGE (2007), Valinhos tem 99.040 habitantes, e estima-se que estejam distribuidos assim: 95% urbano e 5% rural (sendo o território urbano de 65 Km2 e o rural 83Km2)
Eu que fiquei oito anos como visitante de Valinhos e agora que retornei aqui fiquei chocada com as mudanças ocorridas ao longo desse ultimos anos.
As ruas que mudaram seu fluxo, com bolsões de segurança, muros e cancelas. Morros que ganharam casas amontoadas, como favelas de luxo. Uma paisagem árida, fria (ou quente pelo asfalto), solitária, triste. Pessoas que não se relacionam diretamente com o municipio, apenas dormem nele, além de frequentarem colégios caros e a infraestrutura de Campinas.
Uma nova relação entre as pessoas se consolida, além da nova dinâmica do meio ambiente.

Vejas teses de mestrado a esse respeito:
Condominios fechados : localizações de pendularidade : um estudo de caso no municipio de Valinhos, SP de Elaine Migloranza
e Mudanças na forma de ocupação do espaço urbano em Valinhos, SP : a expansão dos condominios fechados de Veridiana Lima da Silva

sábado, fevereiro 07, 2009

Políticas públicas e o projeto Cenários 2020- SP



Falando um pouco de política...

Tem gente que, por não enxergar a Agroecologia no cenário político, acha que ela não se envolve com ela. (Aí entra a problemática de nossos meios de comunicação!)

Na verdade, é exatamente o contrário. A agroecologia é um movimento político em sua essência, já que as tranformações e idéias propostas por ela, demandam um envolvimento inevitável dos Poderes Públicos.

É nesse caminho que o Ministério do Desenvolvimento Agário - MDA, entre outros, vem apoiando inúmeras iniciativas, como cursos de formação, publicações, eventos, fóruns, conselhos, comissões e muitos projetos alinhados com a proposta agroecológica, embasados pela Pnater - Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural .

Fotos do II Encontro Internacional de Agroecologia, realizado em 2005- Botucatu pelo PROGERA(Programa de Extensão Rural Agroecológica de Botucatu e região) - Instituto Giramundo, com financiamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

A Secretaria do Meio Ambiente -SMA do estado de São Paulo, preocupada com o cenário ambiental e o nosso futuro está organizando uma pesquisa (Cenários 2020) com objetivo de elaborar propostas de políticas públicas de médio e longo prazo a partir de cenários ambientais prospectivos para o ano de 2020. É um projeto de planejamento que busca inserir a dimensão ambiental nas ações do Estado e da iniciativa privada, de modo a direcionar a trajetória ambiental de São Paulo pela melhor rota possível.

Tomei conhecimento desta pesquisa por indicação de uma amiga. Respondi a primeira e segunda etapa, que contém informações muito importantes e interessantes que irei compartilhar alguns itens nas próximas postagens...
em temas como: Planejamento Regional, Resíduos Sólidos, o preço do petróleo, Transferencia de bacias, dinâmica interna de regiões metropolitanas, entre outros!

A intenção da pesquisa é interessante porém um tanto abstrato e relativo, já que as respostas sempre envolvem um grau de incerteza gigantesco. Não consegui compreender muito bem qual encaminhamento será feito a partir da pesquisa. Se querem um banco de dados, se vão registrar meus votos e daqui 11 anos virão me exigir algo. (na verdade, sei que aumenta minha responsabilidade para em 2020 rever essa pesquisa e compreender os rumos tomados pelo Estado!)

Só para terem noção... as questões foram do tipo:
Sobre Cobertura Vegetal, (
Nas regiões onde as atividades agropecuárias são intensivas, estima-se que a cobertura vegetal ocupe, em média, menos de 9% destas propriedades), por exemplo:

1)A questão se refere à probabilidade de que, até 2020, a cobertura com vegetação natural de propriedades rurais produtivas ocupe, em média, pelo menos 15% de suas áreas.
E as respostas foram: "É quase certo que não ocorra; é mais provavel que não ocorra; As probabilidades de ocorrencia são incertas; é mais provavel que ocorra; é quase certo que ocorra"

Muito Vago, porém Válido!

Fonte:

www.cenarios2020.sp.gov.br
(Fonte: Folha Online) http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=43520


quarta-feira, fevereiro 04, 2009

O absurdo da Agricultura - J. Lutzenberger

Segue texto (Estudos Avançados,15. 2001) do saudoso ambientalista José Luztenberguer, falecido em 15 de maio de 2002. Seu corpo está enterrado no Rincão GAIA, em Porto Alegre, que pertence à Fundação Gaia, entidade que foi fundador em 1987.



O Absurdo da Agricultura


AGRICULTURA foi inventada entre 10 e 15 mil anos atrás, e nos últimos dois ou três mil anos evoluiu para belas culturas camponesas, localmente adaptadas e sustentáveis em muitas regiões do mundo, especialmente na Europa, na Ásia, no México, na América Central, nos Andes, e em algumas regiões da África.
Desde o início da colonização, agricultores americanos, apesar de muitos desastres, também desenvolveram belos sistemas agrícolas, que estavam se tornando sustentáveis. Muitas dessas culturas ainda estavam intactas até o final da Segunda Guerra Mundial. As poucas remanescentes atualmente estão sendo desestruturadas.

A indústria tem conseguido sucessivamente se apropriar de uma parte crescente das atividades dos agricultores, tomando deles tudo o que gera lucros seguros, deixando-lhes diversos riscos, entre os quais o de má colheita devido a mau tempo e o risco de perder dinheiro devido à crescente dependência de insumos agrícolas, adquiridos a preços cada vez mais altos e tendo que vender seus produtos a preços cada vez mais baixos.
O argumento convencional em favor dos métodos da agricultura moderna é que eles constituem a única maneira eficiente de resolver o problema da fome mundial e da alimentação das massas que ainda estão por vir com a explosão populacional. Mas isto é uma ilusão.
É certo que os métodos agrícolas tradicionais poderiam ser aperfeiçoados com o conhecimento científico atual, principalmente o de como as plantas crescem, o da estrutura, da química e da vida do solo, bem como o do metabolismo das plantas. Mas o aperfeiçoamento não precisa ser direcionado para monoculturas gigantescas, altamente mecanizadas, com toda a parafernália dos fertilizantes comerciais e venenos sintéticos, com a produção agrícola sendo transportada pelo mundo todo. A grande monocultura foi uma invenção do colonialismo. Os poderes coloniais não podiam extrair muito do campesinato tradicional cuja produção esteve concentrada em safras altamente diversificadas, voltadas para a subsistência e eventualmente direcionadas para os mercados regionais e locais. Eles – os poderes coloniais – queriam grandes quantidades de algodão, açúcar, café, chá, cacau entre outros produtos. Isto conduziu à marginalização milhões de pessoas e também esteve na raiz do tráfico de escravos da África para as Américas, uma das maiores calamidades da história da humanidade.
O problema fundamental com a agricultura moderna é que ela não é sustentável. Mesmo se fosse tão produtiva quanto é afirmado, o desastre seria apenas postergado e, então, muito pior. Se quisermos alimentar as massas crescentes – é evidente que devemos encontrar também maneiras de controlar nossos números – teremos de desenvolver métodos de produção agrícola sustentáveis.
Os agricultores chineses, por exemplo, por três mil anos obtiveram alta produtividade dos seus solos sem comprometer a fertilidade. Ao contrário, eles desenvolveram e obtiveram uma fertilidade máxima do solo. Os agricultores regenerativos modernos estão aprendendo a se tornar cada vez mais sustentáveis, com colheitas otimizadas e métodos localmente adaptados, enquanto recuperam e mantêm a biodiversidade nos seus cultivares e na paisagem circundante.
Vamos chamá-los agricultores regenerativos, e não biológicos, orgânicos ou alternativos. Quando se trata de vida, seja bom ou mau, tudo é biológico, é orgânico; alternativo tem apenas a concepção de diferente. Mas regenerativo significa regeneração do que tem sido perdido ou destruído. A agricultura moderna tem se desligado da lógica dos sistemas vivos naturais.
Todos os ecossistemas naturais possuem retroação interna automática que, desde o começo, tal como quando um novo pedaço de terra estéril – digamos, a encosta de um vulcão – é conquistado, faz as condições ambientais melhorarem até que um clímax de atividade biológica máxima e sustentável seja atingido.
Nossos ecossistemas de agricultura moderna fazem exatamente o oposto ao impor retroações (agroquímica, agressão mecânica ao solo) que gradualmente degradam o meio ambiente e empobrecem a biodiversidade.
Infelizmente, a agricultura moderna obtém sucesso exaurindo o solo e substituindo a fertilidade perdida mediante nutrientes que vêm de fora: fertilizantes comerciais, tais como os fosfatos provenientes de minas que estarão brevemente esgotadas. As minas de potássio são mais abundantes; mas o nitrogênio, o mais importante elemento, embora venha da atmosfera – uma fonte virtualmente inesgotável e para lá acaba voltando – é obtido pela síntese de amoníaco Haber-Bosch, um processo que consome enormes quantidades de energia proveniente de hidroelétricas, eletricidade que poderia estar economizando combustíveis fósseis em outro lugar. Além disso, todos os outros insumos, tais como os agrotóxicos e, cada vez mais, pesado maquinário, são também grandes consumidores de energia.
Mas a agricultura, se a olharmos de uma perspectiva holística, ecológica, é um esquema para colher energia solar via fotossíntese. Enquanto todas as formas de agricultura tradicional têm um balanço de energia positivo, a agricultura moderna perverte até mesmo este aspecto fundamental. Em sua maior parte, tem balanço de energia negativo.
Quase todas as suas operações, supostamente de alta produtividade, requerem mais energia fóssil nos insumos do que está contido em seu produto. Para usar uma metáfora adequada, isto tem se tornado um poço de petróleo no qual o motor que aciona a bomba consome mais combustível do que ela pode extrair.
Este tipo de operação só pode sobreviver com subsídios. Sustenta-se que a agricultura moderna é tão eficiente que apenas em torno de 2% da população pode alimentar a população mundial. Até a virada do século, na Europa, nos Estados Unidos e na maioria dos países, quase 60% da população trabalhava no campo. No final da Segunda Guerra Mundial ainda eram quase 40%.
Atualmente, nos EUA, menos de 2% da população trabalha na agricultura. Na maioria dos países europeus essa proporção também está se aproximando de 2%, visto que ainda continua a marginalização de agricultores. Agora, quando se afirma que nas economias modernas somente 2% das pessoas podem alimentar a população total, em comparação a 60 ou 40% do passado, isto ou é uma ilusão para os que acreditam ou uma mentira para os que sabem, baseada numa falsa comparação.
No contexto da economia como um todo, o antigo campesinato era um sistema de produção, manipulação e distribuição de alimento que também produzia seus próprios insumos. A fertilidade do solo era mantida com esterco, rotação de cultivos, plantas companheiras, adubação verde, composto, cobertura morta e descanso da terra. As sementes eram selecionadas do melhor de cada safra; animais de carga e tração supriam a energia; os moinhos usavam vento ou água como fonte de energia. Tudo era energia solar. A pouca manipulação ou beneficiamento que os alimentos sofriam era feita na propriedade ou na aldeia, cujos artesãos também eram contados como população rural. O mesmo se aplicava aos utensílios, arados, enxadas, carretas etc. A maior parte da produção agrícola era entregue quase nas mãos do consumidor na feira semanal. Em nossa língua sobra uma linda relíquia daqueles tempos: segunda, terça, quarta-feira...
O agricultor moderno é apenas uma pequena engrenagem em uma enorme infra-estrutura tecnoburocrática que até mesmo requer legislação especial e pesados subsídios. Comparado com seus antecessores que faziam quase tudo o que estivesse relacionado com a produção, o processamento e a distribuição de alimentos, ele não é muito mais do que um tratorista e um espalhador de veneno.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha estava totalmente devastada, os habitantes das cidades podiam se espalhar pelo campo e fazer hamstern, isto é, trocar qualquer coisa de valor: um relógio, um anel, um piano... por alimento. Os camponeses tinham comida; tinham cereais, feijão, batata, verduras, frutas, leite, queijo, frango, gansos... e muito mais.
Hoje, não seria necessária uma guerra para colocar os agricultores europeus em uma posição em que eles próprios teriam de fazer hamstern! Nenhuma bomba recisaria cair, um simples colapso na energia, no transporte, especialmente na importação de fertilizantes minerais e ração para gado, no sistema bancário e mesmo nas redes de computadores e comunicações, seria suficiente para tanto. Centenas de milhares de agricultores tiveram que desistir e partir para as cidades ....

Espantoso, que os militares não pareçam estar preocupados. Fundamentalmente, a segurança nacional depende de uma agricultura sadia e sustentável. O sistema atual de produção e distribuição de alimentos (incluindo fibras e alguns outros itens não-comestíveis) começa nos campos de petróleo e continua nas minas, passa pelas refinarias, siderúrgicas, plantas de alumínio, indústrias químicas, de maquinário, de embalagens, pelo envolvente sistema de transporte (consumindo principalmente combustíveis fósseis), além de computadores, supermercados e um totalmente novo complexo de indústrias que não existia no passado: a manipulação de alimentos que mais mereceria ser chamada de indústria de desnaturação e contaminação de alimentos (com aditivos e resíduos de agrotóxicos).
Se quisermos comparar o agricultor de hoje com o tradicional, então todas as horas de trabalho precisam ser adicionadas; desde indústrias, comida fast food (que bem merecem o qualificativo de junk food – comida entulho), distribuição de alimentos, até outros serviços que, direta ou indiretamente, contribuem para a produção e manipulação de alimentos.
Deveriam até mesmo ser incluídas as horas de trabalho que corresponderiam ao dinheiro que, em outras profissões, precisa ser ganho para pagar os impostos que financiam os subsídios. É significativo que a maior parte dos subsídios vai, não para o agricultor, mas para o complexo industrial. O agricultor é sempre mantido à beira da falência.
Um balanço completo deste tipo certamente mostraria que, atualmente, numa economia moderna, também em torno de 40% ou mais de todas as horas de trabalho, vai para a produção, manipulação e distribuição da comida.
Os economistas convencionais de hoje, aqueles que nossos governantes ouvem – em sua visão não-holística – tratam as fábricas de tratores e colheitadeiras, a indústria de maquinário, as fábricas de fertilizantes químicos e agrotóxicos, a indústria química, e assim por diante, como se nada tivessem a ver com alimentos.
O que temos, então, com raras exceções, é redistribuição de tarefas e certas formas de concentração de poder nas grandes corporações, e não mais eficiência na agricultura.
Ao analisar em detalhe alguns dos aspectos decisivos do moderno sistema de produção e distribuição de alimentos, conclui-se que, além de não ser mais produtivo em termos de eficiência de mão-de-obra, tampouco é mais eficaz em termos de produtividade por hectare. Em muitos casos, como na criação intensa de animais, tal sistema é até mesmo destrutivo, consumindo mais alimento do que produz.
No Sul do Brasil, durante a última metade do século XX a grande floresta subtropical do vale do Uruguai foi completamente devastada, deixando apenas algumas pequenas relíquias. A floresta foi derrubada e queimada com a quase total destruição da madeira, para abrir espaço para a monocultura de soja. Isto não foi feito para aliviar a fome nas regiões pobres do Brasil, mas para alimentar o gado do Mercado Comum Europeu, enriquecendo uma minoria sem tradição agrícola. As plantações de soja estão entre as mais modernas, maiores, altamente mecanizadas e com os habituais insumos químicos. Essas plantações não são, de maneira alguma, atrasadas quando comparadas ao mesmo tipo de plantação nos Estados Unidos.
No nosso clima subtropical o agricultor tem a vantagem suplementar de poder plantar trigo, cevada, centeio ou aveia, mas também de fazer feno e silagem sobre o mesmo solo no inverno, mas poucas vezes o faz. Comparado ao que os nossos colonos faziam em solos similares, a produtividade é baixa, raramente mais do que três toneladas de grãos (total, verão e inverno) por hectare. O camponês, que trabalhava para alimentar a população local, facilmente produzia 15 toneladas de comida por hectare, diversificando com mandioca, batata-doce, batata inglesa, cana-de-açúcar e grãos, mais verduras, uvas e todos os tipos de frutas, feno e silagem para o gado, além de criar porcos e galinhas. Mas ele não produzia PIB. O PIB só reflete fluxo de dinheiro, não leva em conta auto-suficiência e mercado local. A conta do PIB interessa ao banqueiro, ao governo, às grandes corporações transnacionais, e nada tem a ver com o bem-estar da população.
Quando estatísticas das Nações Unidas declaram que quase a metade da população mundial vive com menos de US$ 2 por dia, isso leva a falsas conclusões. Ninguém viveria com US$ 2 por dia se tivesse que comprar sua comida, suas roupas, seus utensílios no supermercado ou shopping center.
No período áureo de nossa colônia no Rio Grande do Sul, anos 30, o colono poderia não ter um tostão no bolso, mas sempre tinha mesa farta, vivia muito bem. Não obstante esta realidade, a política agrícola oficial tem sempre apoiado os grandes às custas dos camponeses. Centenas de milhares deles tiveram que desistir e partir para as cidades, freqüentemente para as favelas, ou mais para o Norte, em direção à floresta amazônica.
Uma devastação tremenda foi feita com dinheiro do Banco Mundial no estado de Rondônia, e os pequenos agricultores que lá foram assentados, não sabendo como cultivar nos trópicos, sem apoio, em geral fracassaram, deixando para trás devastação, enquanto novas áreas da floresta eram desmatadas. No Brasil Central, o Cerrado, o equivalente sul-americano da savana africana, está hoje sendo quase totalmente destruído para dar lugar a mais plantações de soja, uma das quais cobrindo centenas de milhares de hectares contíguos. Na sua biodiversidade o Cerrado é tão valioso quanto a floresta tropical e, eventualmente, até mais.
Num exemplo concreto, argumenta-se que os índios camponeses em Chiapas, México, que há alguns anos estão lutando por sua sobrevivência rebelando-se contra o Mercado Comum norte-americano (NAFTA), são atrasados.
Eles produzem somente duas toneladas de milho por hectare, comparando-se com as seis produzidas nas plantações mexicanas modernas. Mas isso é somente parte do quadro, as plantações modernas produzem seis toneladas por hectare, e apenas isso.
Os índios produzem uma colheita mista: entre seus pés de milho, que também servem para suporte de variedades de feijão (que são trepadeiras), eles plantam legumes, abóbora, morangas, batata doce, batata inglesa, tomate e todo tipo de vegetais, frutas e ervas medicinais. A partir do mesmo hectare eles também alimentam seu gado e galinhas. Facilmente produzem 15 toneladas de alimentos por hectare, tudo sem fertilizantes comerciais ou pesticidas, e sem a assistência de bancos, governos ou corporações transnacionais.
A marginalização de tais pessoas é a continuação de um dos maiores desastres dos tempos modernos. Ao chegar às favelas das cidades terão de comprar comida cultivada em monoculturas que são menos produtivas do que as delas. Em última análise, existe menos comida e mais pessoas para alimentar. Existe excesso em alguns lugares e escassez noutros. Freqüentemente a terra é tomada por criadores de gado que raramente produzem mais do que 50 kg de carne por hectare ao ano.
Centenas de histórias similares poderiam ser contadas. Acima de todas as calamidades pessoais, quando a terra perde seus camponeses, temos genocídio cultural!
No caso da criação em massa de animais para carne e ovos, os métodos são absolutamente destrutivos: muito mais alimento para humanos é destruído do que produzido. As galinhas em seus tristes campos de concentração ou fábricas de ovos, eufemisticamente chamadas de “granjas”, são alimentadas com rações “cientificamente equilibradas”, consistindo em grãos de cereais, soja, torta de óleo de palma ou de mandioca, muitas vezes com farinha de peixe.
Conhecemos casos no Brasil nos quais sua ração contém leite em pó, proveniente do Mercado Comum Europeu! Isto coloca essas aves então numa posição de competição com os humanos: nós as alimentamos com nossas lavouras.
Um absurdo total se o propósito é contribuir para resolver o problema da fome mundial.
Na agricultura tradicional as galinhas comiam insetos, minhocas, esterco, ervas, capim e restos de cozinha e de colheita, desta maneira aumentando a capacidade de sustento das terras dos agricultores para humanos. Agora elas a diminuem.
Nestes esquemas, o coeficiente de transformação da ração em alimento humano é próxima de 20 para 1. É preciso levar em conta que metade do peso dos animais vivos (penas, ossos, intestinos) não é consumida por nós. Também é preciso considerar que as rações desidratadas e concentradas têm um alto consumo de energia, atingindo o máximo de 12% de água, enquanto a carne contém até 80%. Nos galpões de engorda, as operações mais eficientes usam em torno de 2,2 kg de ração para obter 1 kg de peso vivo, metade da qual é alimento humano.
Então, 2,2 para 1 se torna 4,4 para 1. Corrigindo-se o conteúdo de água, 4,4 vezes 0,88 e 1 vezes 0,2 obtém-se 3,87 para 0,2, igual a 19,36 para 1. Quando se trata de gado bovino confinado, como nos feed lots de Chicago, a relação é cerca de cinco vezes maior.
Mais recentemente, algumas de nossas granjas “aperfeiçoaram” ainda mais este coeficiente, incluindo na ração rejeitos de galinhas abatidas, desta maneira forçando-as ao canibalismo!
Outro aspecto absurdo diz respeito às rações “cientificamente equilibradas” que não contêm nada verde, o mesmo acontecendo com as dos porcos. As galinhas e os porcos são vorazes consumidores de ervas, gramíneas, frutos, nozes e raízes. Em nossos experimentos com agricultura sustentável na Fundação Gaia também os alimentamos com plantas aquáticas, com grande sucesso – animais saudáveis, sem antibióticos, sem drogas, sem veterinários.
Além disso, nos “campos de concentração” de galinhas e fábricas de ovos, assim como nos modernos “calabouços” de porcos, as pobres criaturas vivem sob condições de extremo estresse.
É tempo de acabar com a mentira de que apenas a agricultura promovida pela tecnologia pode salvar a humanidade da inanição. O oposto é verdadeiro. É preciso uma nova forma de balanço econômico que, à medida que soma o que é chamado “produtividade” ou “progresso” na agricultura, também deduza todos os custos: as calamidades humanas, a devastação ambiental, a perda da diversidade biológica na paisagem circundante e, ainda, a mais tremenda perda, a biodiversidade em nossos cultivares.
Este segundo aspecto será agora enormemente agravado com a biotecnologia dominada pelas grandes empresas, como veremos adiante. E, mais importante e decisivo: a não-sustentabilidade disso tudo. Temos o direito de agir como se fôssemos a última geração?
No caso de operações industriais envolvendo galinhas é fácil ver como tais métodos destrutivos se desenvolveram. Estou falando do que observei no Sul do Brasil – o Brasil é um grande exportador de carne de galinha, principalmente para o Oriente Médio e o Japão.
A partir de esquemas muito simples, nos quais pequenos empresários individuais confinavam galinhas num galpão e as alimentavam com milho, o sistema coalesceu e cresceu até um ponto em que, atualmente, existem em torno de meia dúzia de companhias muito grandes e umas poucas pequenas. Os grandes abatedouros processam até centenas de milhares de galinhas por dia; operam de acordo com regras impostas por eles, chamadas “integração vertical”. O “produtor” assina um contrato, comprometendo-se a comprar todos os seus insumos – pintinhos, ração e drogas – do abatedouro. Mesmo que ele seja agricultor e tenha uma grande produção de grãos, está proibido de usá-la para alimentar suas galinhas. É obrigado a comprar a ração pronta, mas pode vender o seu milho para a fábrica de ração que pertence à mesma companhia proprietária do abatedouro e da incubadeira que produz os pintos. Estes operam um tipo diferente de “campo de concentração” de galinhas, onde os prisioneiros são galos e poedeiras, havendo um galo para cada dez galinhas. As galinhas não ficam em pequenas gaiolas, como nas fábricas de ovos, elas podem se mover livremente dentro do galpão e pular para dentro de amplos ninhos para pôr os ovos.
Nas operações de esteiras rolantes das fábricas de ovos, chamadas baterias, as pobres poedeiras estão confinadas, três em cada gaiola, sobre uma grade de arame, onde os ovos rolam para fora. Os pintos produzidos nestas incubadeiras não são mais de raças tradicionais de galináceos: são de marcas registradas e híbridos. Assim como o milho híbrido, eles não podem ser reproduzidos com manutenção de características raciais.
Após comprar todos os seus insumos da companhia com a qual assumiu contrato, o camponês é obrigado a vender somente para a mesma. Ele não é autorizado a vender para empresas concorrentes, pois estas não comprariam sua produção. Assim, ele pode ter a ilusão de ser um pequeno empresário autônomo, mas sua situação real é a de um operário com horas de trabalho ilimitadas, sem fins-de-semana, feriados, nem férias e ainda tem que pagar sua própria previdência social.
Se a grande companhia trabalhasse com empregados de carteira assinada, ela não seria tão lucrativa: sairia muito caro e correria riscos. Desta maneira, deixam todos os riscos com o produtor: perda por doenças ou custos adicionais com drogas e antibióticos, choque de calor – um desastre comum durante os dias quentes de verão, quando centenas ou milhares de galinhas morrem nos abarrotados e mal ventilados galpões – e perdas durante o transporte. As galinhas
que morrem nos caminhões da companhia no trajeto até o abatedouro são também descontadas.
Os lucros do produtor também diminuem constantemente com o crescente preço dos insumos e a queda do faturamento com as vendas. A margem do produtor é muito pequena, mesmo se tudo correr bem. Mas, se for preciso alimentar os animais durante mais alguns dias, o lucro pode evaporar ou até mesmo se transformar em perda. Esta é uma ocorrência comum. O abatedouro agenda suas viagens de entrega de galinhas prontas de acordo com sua própria conveniência.
Mas se a companhia obtém lucros excepcionais no mercado de exportação, nada vai para o produtor?... Portanto, os “campos de concentração” de galinhas nada têm a ver com maior produtividade para ajudar a salvar a Humanidade de inanição – de fato, eles contribuem para o problema – mas concentram capital e poder pela criação de dependência.
Estes métodos não foram inventados pelos agricultores. É impensável que um agricultor – numa cultura camponesa sadia – tivesse a idéia de alimentar maciçamente suas galinhas com grãos, a menos que fossem grãos estragados, e isolá-las de sua fonte natural de alimentos, desta maneira desperdiçando parte da capacidade de sustentação do solo para humanos, destruindo ao mesmo tempo parte de sua colheita.
Tais métodos também não são o resultado concatenado de uma conspiração pela tecnocracia. Tais esquemas crescem naturalmente a partir de uma “semente” inicial que pode ter tido uma intenção completamente diferente. Neste caso, como foi também na agroquímica, era o esforço de guerra. A conspiração cresceu ao longo do tempo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo estadunidense iniciou o sistema de subsídios para a produção de grãos, o qual conduziu a enormes excedentes. Assim, as autoridades da área agrícola procuraram “consumo nãohumano” para os grãos. Integração vertical era somente um estágio momentâneo no processo de concentração de poder. Em breve eles encontraram maneiras de banir – por meio de legislação especial – a criação de galinhas soltas (caipiras) por
agricultores independentes. Já foi tentado, sem sucesso, mas, por dispositivos legais especiais, conseguiu-se tornar muito difícil para pequenos agricultores a venda de ovos no mercado aberto.
No caso do milho híbrido também não existia conspiração no início, ela veio mais tarde. Geneticistas descobriram que pelo cruzamento de duas variedades super puras de milho – variedades obtidas após oito a dez gerações de autofecundação – eram obtidas plantas de alta produtividade e uniformidade perfeita. Deve ter sido uma decepção quando descobriram que as variedades não eram estáveis. Após ressemeadura, as variedades dessegregaram, de acordo com as Leis de Mendel. A nova colheita era caótica – pés de milho pequenos e grandes, com uma só espiga, com muitas espigas, cores, formas e qualidades de grãos diferentes. Mas, do ponto de vista do vendedor de sementes, continuava sendo uma verdadeira vantagem!
O agricultor não mais poderia guardar sua própria semente, tinha que comprar sementes novas a cada ano. O vendedor não precisava sequer da proteção de uma patente. Felizmente na maioria dos cultivos, especialmente grãos como trigo, cevada, centeio e aveia, este tipo de hibridização ainda não é economicamente viável para os geneticistas. Eles estão tentando com todas as culturas que podem. Funciona com galinhas.
No Sul do Brasil foi necessário fundar uma associação com o objetivo de preservar as raças tradicionais de galinhas. A maioria agora está em perigo de extinção. Algumas já se foram. Somente as cepas registradas de galinhas híbridas não estão ameaçadas (enquanto durar a loucura dos “campos de concentração” de galinhas e fábricas de ovos). Quanto ao milho, quase todas as variedades tradicionais já não existem. Se um agricultor quiser plantar uma delas, não obtém o crédito do banco. Apenas as variedades “registradas” são aceitas.
Atualmente, a manipulação genética direta, chamada biotecnologia, que opera em nível de cromossomos, permite que o especialista assuma o controle, tirando-o do agricultor. Mas, como a maioria dos produtos resultantes da manipulação genética direta não dessegregam na reprodução, como no caso dos híbridos naturais, é preciso cair nas patentes.
Como nasceu a agroquímica Até o final dos anos 40, a pesquisa em agricultura visava a soluções biológicas.
A perspectiva era ecológica, embora mal se falasse em ecologia. Se esta tendência tivesse podido continuar, teríamos hoje muitas formas de agricultura sustentável, localmente adaptadas e altamente produtivas. Começando nos anos 50, a indústria conseguiu fixar um novo paradigma,
nas escolas, na extensão e na pesquisa agrícola. Vamos chamá-lo paradigma NPK + V. NPK que corresponde a nitrogênio, fósforo, potássio, o V significando veneno. Os fertilizantes comerciais tornaram-se um grande negócio depois da Primeira Guerra Mundial. Logo no começo da Guerra, o bloqueio Aliado cortou o acesso dos alemães ao salitre chileno, essencial para a produção de explosivos.
O processo Haber-Bosch para a fixação de nitrogênio a partir do ar era conhecido, mas ainda não tinha sido explorado comercialmente. Os alemães montaram então uma enorme capacidade de produção e conseguiram lutar por quatro anos. O que seria do mundo se esse processo não tivesse sido conhecido? A Primeira Guerra Mundial não se teria realmente desencadeado, não teria acontecido o Tratado de Versalhes e, portanto, não teria havido Hitler! É incrível como a tecnologia pode mudar o curso da história! Quando a guerra acabou existiam enormes estoques e capacidade de produção, mas não havia mais um grande mercado para explosivos. A indústria,
então, decidiu empurrar os fertilizantes nitrogenados para a agricultura. Até então os agricultores estavam bastante satisfeitos com seus métodos orgânicos de manutenção e aumento da fertilidade do solo. O guano e o salitre chileno eram usados de maneira muito limitada, e principalmente em cultivos muito especiais, entre eles a jardinagem intensiva.
Fertilizantes nitrogenados, na forma de sais quase puros e concentrados, fertilizantes à base de nitrato e amônia, de certa forma viciam: quanto mais se usa mais se precisa usar. Então eles se tornaram um grande negócio. A indústria desenvolveu um espectro completo, incluindo fósforo, potássio, cálcio, micro- elementos, mesmo sob a forma de sais complexos, aplicados na forma granulada, algumas vezes lançados de avião.
A Segunda Guerra Mundial deu um grande empurrão para uma pequena e quase insignificante indústria de pesticidas e, realmente, projetou-a para uma produção em grande escala. Hoje, o equivalente a centenas de bilhões de dólares em venenos é espalhado nas terras de todo o Planeta.
Durante a Primeira Guerra Mundial gás venenoso, como arma tóxica, foi usado apenas uma vez, com efeitos devastadores para ambos os lados, levando à sua total proibição. Durante a Segunda Guerra Mundial, gases não foram utilizados em batalha, mas muitas pesquisas foram desenvolvidas. A Bayer, entre outras empresas, estava neste jogo, desenvolvendo os ésteres do ácido fosfórico. Depois da guerra essas empresas tiveram grande capacidade de produção e de estoques, e concluíram que o que mata gente também mata insetos. Fizeram novas fórmulas
e as comercializaram como inseticida.
O DDT era conhecido como uma curiosidade de laboratório, quando Muller, na Geisy, descobriu que o produto matava insetos sem, aparentemente, afetar pessoas. Comunicou o fato ao exército dos EUA que, nesse momento, sofria com a malária no Pacífico, enquanto lutava contra os japoneses. Usaramno de forma totalmente descuidada. Convencidos de que era inofensivo, o espalharam sobre paisagens inteiras e até dentro de casas e sob a vestimenta das pessoas.
Pouco antes do fim da guerra, um cargueiro estadunidense estava a caminho de Manila com uma carga de potentes fitocidas (biocidas que matam plantas) do grupo 2,4-D e 2,4,5-T. A intenção era matar de fome os japoneses, destruindo suas colheitas mediante a pulverização do veneno desde o ar. Tarde demais. O barco recebeu ordem de voltar, antes mesmo de chegar. Os EUA tinham acabado de jogar as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Mesma história: grande capacidade de produção, enormes estoques sem compradores. A substância foi reformulada como “herbicida” e descarregada nos agricultores. Depois, durante a Guerra do Vietnã, as forças armadas estadunidenses impiedosamente espalharam o que eles chamaram de “Agente Laranja” (e outras cores) sobre milhões de hectares de floresta tropical, pretendendo que fosse somente um desfolhante para tornar visíveis as forças inimigas. De fato,
estas formulações continham grandes concentrações de 2,4,5-T que destruíam totalmente as florestas.
A indústria, querendo preservar em tempo de paz o que tinha sido um grande negócio em tempo de guerra, conseguiu dominar quase completamente a pesquisa agrícola, redirecionando-a para seus próprios objetivos. Conseguiu cooptar a pesquisa e a extensão agrícola oficial, assim como as escolas. Fazendo lobby a favor de legislação ou regulamentação adequadas e criando esquemas
bancários de crédito fácil, colocaram o agricultor numa posição na qual dificilmente sobravam outras alternativas.
Atualmente, o paradigma agroquímico é aceito quase sem questionamento nas escolas agrícolas, na pesquisa e na extensão. Os agricultores, em sua maioria, acreditam nele e, freqüentemente, quando marginalizados, culpam a si mesmos por sua incapacidade para competir.
Tudo isso veio a existir não como uma conspiração deliberada por pessoas de mentes diabólicas, mas desenvolveu-se e estruturou-se de oportunismo em oportunismo. À medida que uma nova técnica, processo ou regulamentação dava vantagem a alguém ou a alguma instituição, a respectiva tecnologia era promovida e ideologicamente consolidada. Alternativas que não se encaixavam com as crescentes estruturas de poder eram combatidas, ignoradas ou desmoralizadas. Agora sim, no caso da implementação da biotecnologia na agricultura, controlada por grandes corporações transnacionais, parece que temos uma verdadeira conspiração e que os danos serão mais irreversíveis do que os sofridos até então.
O principal problema aqui não é tanto se nossos alimentos se tornarão de qualidade inferior e até nocivos – apesar de que isso possa vir a ocorrer – mas, novamente, trata-se de adicionar mais estruturas de dependência e dominação sobre os agricultores que ainda restam e impor uma limitação de escolhas para o consumidor.
A fantástica diversidade de cultivares que tínhamos, e ainda temos hoje, depois das tremendas perdas causadas pela “Revolução Verde” durante as últimas décadas, é o resultado da seleção, consciente e inconsciente, por parte dos camponeses ao longo dos séculos. Pensemos somente na família das crucíferas – repolho, couve chinesa, rabanete, nabo, mostarda, couve-flor, brócolis, colza, entre muitas outras. Nenhum destes agricultores jamais solicitou patentes, registro ou
certificação. Agora, indústrias como a Monsanto querem que aceitemos sua manipulação desta riqueza preexistente, como a soja Roundupready, com o argumento de que elas apenas estão dando prosseguimento e acelerando este processo, contribuindo assim para a solução dos problemas alimentícios da Humanidade. Insistem em que não há outra saída, mas sabem muito bem que existem outras alternativas, melhores, mais saudáveis e mais baratas.
É de conhecimento geral que a agricultura deve encontrar caminhos para se afastar dos venenos. Possuímos todos os conhecimentos necessários. Milhares de agricultores orgânicos em todo o mundo são prova disto. Com cultivares resistentes e herbicidas, a indústria quer vender pacotes: semente + herbicida, obrigando o agricultor a usar produtos químicos – mesmo que não necessite – e a utilizar o herbicida da própria empresa.
No caso de cultivares com o infame gen Terminator a conspiração é ainda mais óbvia. Com esse tipo de semente eles nem precisam se incomodar em solicitar patentes. Tudo isto nada tem a ver com aumento de produtividade, é a culminação do gradativo processo de desapropriação dos agricultores, para transformar os sobreviventes em meros apêndices da indústria. Isto agravará a marginalização, a desestruturação social, a devastação ambiental, aumentando a perda da biodiversidade em nossos cultivos e aguçando o problema da fome.

José A. Lutzenberger, ambientalista e escritor, foi secretário Nacional de Meio Ambiente.
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